“Toda vez que alguém [de Brasília] abre a boca, eu dou um suspiro”. A frase, em tom de desabafo, foi dita por Artur Grynbaum, vice-presidente do conselho do Boticário a uma plateia de investidores. E mostra que o efeito das declarações de representantes do governo, como as feitas pelo presidente Lula nos últimos dias, não ficam restritas a quem opera no mercado financeiro: pegam a economia real em cheio.
A alta do dólar, que cruzou a linha dos R$ 5,50 nesta quarta-feira (26) após falas de Lula, tem impacto direto sobre a margem de lucro do Boticário, explicou Grynbaum. E do outro lado vem a pancada da taxa de juros, que deve manter-se em 10,5% ao ano por muitos meses. Ela pesa sobre o custo das dívidas – que acompanham, em sua maioria, a variação do CDI.
“O juro em nível alto não é bom para ninguém. Mas é a consequência dos caminhos traçados pelo país”, diz o executivo, em evento promovido pela Galapagos Capital, em São Paulo
Se, de alguma forma, a fala de Grynbaum possa soar exagerada, o fato é que ela encontra ressonância dentro do Banco Central. A autoridade monetária do país também entende que verborragia não está ajudando. “O que se mostrou no passado recente – não é uma opinião minha, é uma constatação – quando a gente olha movimentos de mercado em tempo real com os pronunciamentos, [vê que] teve piora em algumas variáveis macroeconômicas, em alguns preços de mercado”, tecnificou Roberto Campos Neto nesta manhã.
“Então é óbvio que, quando você aumenta o prêmio de risco, por qualquer razão, esse aumento faz com que o trabalho [do BC] fique mais difícil ao longo do tempo”, prosseguiu. Em termos mais claros, as falas do presidente da República defendendo mais gastos pioram a avaliação do Brasil como uma economia confiável perante aos olhos dos investidores. Resultado: o empréstimo sai mais caro e nossa moeda passa a valer menos.
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De acordo o CEO do Grupo Casas Bahia, Renato Franklin, que também participou do debate da Galapagos, cada meio ponto percentual de juros representa R$ 160 milhões nas despesas financeiras da companhia, que enfrenta há meses o desafio de uma reestruturação financeira. “O juro alto adia crescimento, adia o investimento, e assim a gente demora mais para colocar a companhia no lugar”, acrescenta.
No caso da varejista do “Quer pagar quanto?”, a Selic se reflete também nos resultados de seu popular crediário destinado a um estrato de menor renda, especialmente na linha da inadimplência.
“O varejo é um Boeing a 700 quilômetros por hora e a três centímetros do chão. Agora [com os juros estacionados e dólar valorizado], ficamos a apenas um centímetro”, recorre à analogia Franklin.
Made in China
Mas não é só o quadro macroeconômico que castiga o setor: tem ainda a concorrência de players asiáticos, com produtos que chegam ao país em desigualdade de condições, na visão de executivos.
“A ‘taxa das blusinhas’, termo que considero pejorativo, não deveria ser de 20%, mas de 60% [que é o imposto federal padrão para importação]”, afirma Artur Grynbaum. Vale lembrar que a taxação foi sancionada nesta quinta por Lula.
O VP do board do Boticário cita que pelo menos 80% das compras no varejo brasileiro se enquadram na faixa de até US$ 50 (R$ 275). Estatística que dá a dimensão do efeito da tributação de produtos vindos da China para o setor.
O CEO da Casas Bahia lembra que a rede voltou a priorizar os tickets maiores de móveis, geladeiras, fogões e TVs justamente para fugir desse tipo de competição. Outro exemplo citado por Renato Franklin está no mercado de celulares: segundo ele, 20% dos aparelhos vendidos no país são fruto de contrabando.
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Outro ponto levantado por Grynbaum é que os produtos vindos do outro lado do planeta não passam pelo mesmo escrutínio regulatório dos produtos daqui, o que pode ser ainda mais relevante com cosméticos. “Temos que fazer diversos testes antes de lançar um produto. Uma hora pode ocorrer um problema [sanitário] que o governo não espera”, lembra o dirigente do Boticário.
Na visão da dupla, os chineses são competentes o bastante para concorrer por aqui em igualdade de condições, sem precisar de qualquer incentivo. “A Shein é a Zara digitalizada. Não teria necessidade desse tipo de benefício”, afirma Grynbaum.
E o executivo do Boticário conclui: “O nível de complexidade do varejo cresceu exponencialmente. Para os varejistas que não se reestruturaram, o piano está muito pesado”.