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Governo impõe regras ao ‘jogo do tigrinho’, mas bets se tornam um estorvo para a economia

“Ela sempre tinha muito sono de dia. Era porque passava a noite jogando, mas a gente não sabia. O marido acordava de madrugada e via ela no celular – achava que ela estava tendo um caso”. 

A fala é de Joana (nome fictício), prima de R.S., 43 anos – uma vítima do vício em apostas online. No começo, R.S. apostava pequenas somas. Mas em pouco tempo isso não bastava. E o que era só um pouco foi virando mais e mais.

O dinheiro acabou. Vieram as dívidas: R$ 1,3 milhão, boa parte com agiotas.

Como agiota não entra na Justiça, chegaram as ameaças de morte. R.S. viu-se obrigada a queimar um apartamento no Ibirapuera, região nobre de São Paulo. O valor de mercado do imóvel era de R$ 800 mil. Ela vendeu por R$ 600 mil. Foi-se também um sítio, em troca de R$ 300 mil. Para completar, esvaziou R$ 400 mil da poupança do pai.

Agora ela recorre à família para comprar o enxoval de seu primeiro bebê, que está a caminho. A banca venceu – como sempre acontece nos jogos de azar.

Segundo Hermano Tavares, coordenador do programa ambulatorial do Transtorno do Jogo do IPq (Instituto de Psiquiatria), do Hospital das Clínicas/USP, não é simples perceber que algum ente querido está prestes a entrar num buraco desses. “A família, infelizmente, descobre quando o estrago já está avançado.”

Em meio a tudo isso, as apostas online ganharam mais um combustível na quarta-feira (31). Uma portaria do Ministério da Fazenda regulamentou a vertente mais tóxica da modalidade, que até então operava num limbo jurídico: os jogos tipo caça-níquel, como o “do tigrinho” – além dos de roleta, cartas e outros completamente aleatórios, de cassino. Para todos os efeitos,

Até aqui, a legalização só valia para as apostas esportivas. Ainda assim, 80% da receita das bets “esportivas” já vinha desses jogos. A portaria determina que 85% do faturamento com eles deve ser distribuído na forma de prêmios – limitando, obviamente, a banca a um ganho de 15% do que entrar. De resto, vale a regulamentação das apostas esportivas (mais sobre isso adiante).

Um problema para os negócios

Uma postagem recente de Rafael Tenório, empresário alagoano do setor de transportes, alertava que houve um aumento fora do padrão de seus funcionários pedindo antecipação de férias, 13º salário, empréstimo ou pior: acordo de demissão a fim de acessar o FGTS, e usar o dinheiro para pagar dívidas de jogo. 

A rede atacadista Assaí chegou a se pronunciar sobre o impacto das bets em suas vendas. Segundo o CEO da empresa, Belmiro Gomes, mesmo com uma inflação mais branda, a rede não tem visto uma recuperação no volume de receitas e isso se deve à maior pressão de outras despesas no orçamento das famílias – a maior delas, apostas online.

Foto: Getty Images

Um estudo do Santander corrobora a visão de Belmiro Gomes. O banco estima que os gastos com vestuário e calçados caíram de 3,5% para 3,1% do orçamento familiar entre 2018 e 2023, enquanto os gastos com apostas subiram de 0,8% para 1,9%.

“Nossas descobertas sugerem que os varejistas tradicionais não estão apenas competindo entre si pelo dinheiro suado dos consumidores, mas também com um hábito de consumo que promete gratificação instantânea, com o fascínio da riqueza sem esforço”, observam os analistas do banco no documento.

Outro levantamento, da SBVC (Associação Brasileira de Varejo e Consumo), apontou o seguinte: 63% dos usuários de bets dizem que tiveram a renda comprometida por conta do hábito.

Ou seja, cada vez mais gente está usando o dinheiro que sobra – e o que não sobra – com apostas. E isso já compromete gastos com itens básicos. De acordo com a SVBC, 19% dos apostadores passaram a comprar menos alimentos para jogar e 14% reduziram o consumo de produtos de higiene pessoal. Um em cada dez pedalou contas do dia a dia, como as de luz, água ou gás, para poder apostar.

Aposta não é investimento

De forma geral, a maioria dos usuários de bets enxerga a atividade como uma forma de conseguir dinheiro rápido, seja em em momentos de necessidade ou não. Pior: há os que confundem apostas com investimento.

Segundo um levantamento da Anbima, 14% da população adulta (22 milhões de pessoas) fez pelo menos uma aposta online no ano passado. Dessas, 22% consideram as bets uma forma de investimento financeiro. Vale lembrar: nem tudo o que envolve a possibilidade de ganhar dinheiro é “investimento”. Quando o ganho é incerto e “binário” (tudo ou nada) o nome é “aposta” mesmo – e pode servir para produtos do mercado financeiro também, como opções e minicontratos (mas essa é outra história).

As apostas do mercado financeiro, de qualquer forma, estão restritas a um número relativamente pequeno de pessoas – talvez alguns milhares entre os 5 milhões de CPFs registrados na bolsa. Já as apostas online, imediatamente acessíveis a qualquer brasileiro com um celular, geram uma crise de saúde pública – nas palavras do coordenador do IPq.

Hoje, o programa de vício em jogo do Hospital das Clínicas registra 200 novos casos para tratamento por ano. Sim, o número é pequeno, pois trata-se de apenas uma iniciativa, e a subnotificação é brutal. Mas em 2018, antes da chegada das bets no Brasil, esse número era de apenas 5.

Crédito: Adobe Stock

Hermano Tavares, do Ipq, lembra ter visto algo parecido na década de 1990. Daquela vez, o gatilho do vício tinha outro nome: bingos. “Tivemos mais buscas por tratamento contra o vício em jogo naquela época. E agora acontece de novo.” 

Para recapitular: a legalização dos bingos aconteceu em 1993. A modalidade espalhou-se feito pólvora pelo país, mas a ligação com atividades ilícitas, como lavagem de dinheiro, fez com que os bingos acabassem proibidos, em 2004.

Ainda há debates sobre a legalização dos jogos de azar, incluindo bingos e cassinos (banidos desde 1946). Mas, com a chegada das bets, o fato é que o jogo foi liberado no Brasil, para efeitos práticos.

A regulamentação

O fenômeno é recente. Foi em dezembro de 2018, ao final do governo Temer, que as bets foram autorizadas a operar livremente – com a promessa de que esse mercado seria regulamentado em até dois anos; o que não tinha acontecido até o fim do ano passado. Daí em diante surgiram mais de 500 empresas de bet. Hoje, 19 dos 20 clubes da Série A do Brasileiro têm algum patrocínio de bet – a exceção é o Cuiabá.

A regulamentação só veio mesmo em dezembro de 2023, com um Projeto de Lei sancionado por Lula – motivado pela necessidade de aumento de arrecadação de impostos. O PL determina que as bets devem ter sede no Brasil (o que não acontecia em diversos casos), que os sites e apps das casas de apostas tragam contato de serviço de atendimento ao consumidor e impõe restrições de horário para seus comerciais na TV.

Luciano Castán, do Cruzeiro, veste uniforme patrocinado pela Betfair; empresa patrocinou 19 dos 20 times na última temporada | Crédito: Bloomberg

Não menos importante: passa a incidir um imposto de 12% sobre a receita bruta das empresas de apostas. E os ganhos dos usuários ficam sujeitos a um IRPF de 15% – como o de qualquer ganho de capital.

Também ficou combinado que as empresas precisam de uma autorização do Ministério da Fazenda para operar. E que cada permissão terá um prazo de cinco anos. Em maio, a Fazenda estipulou em R$ 30 milhões o preço pela autorização.

Estima-se que as vendas brutas de apostas online no Brasil estejam entre R$ 100 bilhões e R$ 120 bilhões, segundo apontou a XP através de dados de um agregador de plataforma de apostas chamado BNL. O Santander avalia uma cifra ainda maior, de R$ 150 bilhões.

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