A família da secretária aposentada Marcia Bianco, de 74 anos, já convive de perto com o novo Brasil que está chegando. Sua avó materna gerou cinco filhos há quase um século. O pai dela, quando chegou à idade adulta, trouxe três crianças ao mundo entre 1949 e 1959, quando a média brasileira ainda estava acima de seis filhos por mulher, segundo dados da ONU para a época.
Em 1977, a paulistana deu à luz sua primeira e única filha, Gabriela Bianco, atualmente com 46 anos. Não teve mais crianças porque “Deus não quis”, segundo ela. “Não foi por falta de querer. Não aconteceu e não fiquei insistindo.”
Ao que tudo indica, ela não deve se tornar avó, porque a filha não tem planos de maternidade.
Marcia, porém, não enxerga nisso um problema. “Eu aceitei porque acho que cada um tem que levar a vida como acha que deve. Ter filho é fácil, o problema é manter, criar, dar condição, as pessoas estão olhando muito para isso. Então sou ‘vó postiça’. Vejo as crianças do prédio, converso com elas, com os netos de amigas.”
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ainda não divulgou todos os dados do Censo Demográfico 2022, mas os preliminares já deixaram claro: o Brasil está envelhecendo em ritmo mais rápido do que o esperado, sem perspectiva de aumento dos nascimentos.
Entre 2010 e 2022, a população total cresceu 6,5%, quase metade do ritmo registrado na década anterior.
Marcos Gonzaga, pesquisador do Laboratório de Estimativas e Projeções Populacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), explica que o país vive “uma aceleração da transição demográfica”, o que deve antecipar o fim do chamado bônus demográfico.
Falta menos tempo do que se esperava para o país ter mais idosos do que crianças – e menos força de trabalho para sustentar a economia. Como consequência, o Brasil precisará enfrentar debates como uma nova reforma previdenciária, prioridades de investimentos e dinâmicas familiares e trabalhistas.
Pense no bônus demográfico como uma estrada de tijolos dourados que cada país tem uma única chance de percorrer – se quiser se tornar rico e desenvolvido.
A rampa de acesso fica naquele momento da história em que se consegue reduzir a mortalidade e a taxa de filhos por mulher, além de aumentar a longevidade. Com isso, a chamada População em Idade Economicamente Ativa – entre 15 e 64 anos – cresce mais rapidamente que a população em geral, incluindo os inativos (crianças e idosos).
Mais gente produzindo do que dependendo dessa produção é o sinal verde para a economia pisar na tábua.
No Brasil, essa corrida começou a partir de 1970. Até então, a cada cem brasileiros, 42 tinham até 14 anos e três tinham de 65 anos para cima. Sobravam 55 pessoas na força de trabalho para garantir a produtividade. Ou seja, 55 produzindo e 45 dependendo dessa produção.
Essa proporção veio aumentando com o passar do tempo: cinquenta anos depois, o Censo 2022 mostrou que a proporção de crianças havia caído para menos de 20 a cada 100, e a dos idosos saltou para quase 11. Com isso, a faixa de idade economicamente ativa concentrou ainda mais pessoas: 69 em cada cem habitantes produzindo, e 31 inativos.
Mas a estrada de tijolos dourados tem um caminho com começo, meio e fim. Especialistas estimam que a proporção máxima de pessoas ativas tenha ocorrido na década passada, e que já estamos rumo a um futuro com 60% de adultos em idade economicamente ativa e 40% de inativos (15% crianças, 25% idosos).
As projeções populacionais mais recentes já vinham revisando essa tendência para baixo.
Em 2008, o IBGE calculou que, em 2022, 70,9% dos brasileiros teriam entre 15 e 64 anos. Cinco anos depois, a projeção baixou para 69,8% e, em 2018, para 69,1%, praticamente dentro do patamar de fato registrado pelo Censo.
Queda acentuada da fecundidade
Se proporcionalmente a projeção de 2018 acertou na mosca, em valores absolutos ela ficou aquém do esperado. A população em 2022 registrada pelo Censo, de 203 milhões de pessoas, ficou 5% abaixo da projeção de 214,8 milhões.
Entre as crianças, a diferença relativa foi maior: 8,7%. Enquanto a expectativa era de que o Brasil teria quase 44 milhões de pessoas entre zero e 14 anos em 2022, o Censo contabilizou apenas 40 milhões.
Jefferson Mariano, analista do IBGE, explica que essa discrepância se deve a uma superestimativa da fecundidade.
As projeções levam em conta dois indicadores: a taxa de fecundidade específica, calculada segundo o número de nascidos vivos para cada faixa etária das mulheres entre 15 e 49 anos, e a taxa de migração. No caso da taxa de fecundidade, “ela caiu muito, especialmente no Norte e no Nordeste. Ficou bem próxima da do Sul”, explicou Mariano. “O pressuposto era que no Norte e no Nordeste ela é sempre muito mais elevada.”
Com isso, o indicador brasileiro, que já está abaixo da média mundial desde 1985, vai ficando cada vez mais distante do “número mágico” de 2,1 filhos por mulher, a chamada “taxa de reposição”. Essa taxa indica que, na média, cada casal conseguiu colocar pelo menos outras duas pessoas no mundo (o 0,1, segundo os demógrafos, serve para compensar a mortalidade infantil).
Em 2018, o IBGE projetou que essa taxa cairia até chegar a 1,76 em 2021 e 1,75 em 2022. Mas estimativas das Nações Unidas, considerando o número de nascidos vivos pelo total de mulheres de 15 a 49 anos, indica que, em 2021, o patamar do Brasil já era de 1,64.
Os dados mostram que o Brasil passou de uma taxa de mais de seis para menos de três filhos por mulher em apenas 26 anos, entre 1963 e 1989, num ritmo três vezes mais rápido que os Estados Unidos, por exemplo. Ou seja, a estrada de tijolos dourados, aqui, será bem mais curta.
Tendência não deve ser revertida
O Estado de São Paulo, por seu histórico de desenvolvimento, já convive com essa queda há mais tempo. A Fundação Seade, órgão paulista responsável pelas estatísticas demográficas, tem acesso aos dados do Registro Civil e, por isso, já conseguiu fazer alguns cálculos a partir do Censo 2022.
Na quarta-feira da semana passada (22), o órgão divulgou dados sobre a fecundidade das mulheres de São Paulo atualizada até 2022. Eles confirmam a queda da taxa há cinco anos consecutivos, chegando ao menor patamar da série histórica: 1,53 filho por mulher, em média.
Para Bernadette Waldvogel, demógrafa do Seade, a rapidez da queda da taxa pode não ter sido esperada, mas as mudanças sociais e eventos não previstos, como a pandemia, são indicativos não só de que os dados precisam ser interpretados com cuidado, mas também de que dificilmente essa tendência será revertida.
“A gente vai ter que aprender a conviver com essa tendência e com as novas políticas públicas e de planejamento. Mesmo os países que propuseram benefícios maiores [para mulheres terem mais filhos] não conseguiram. Até a China, onde não podia e agora pode, não consegue.”
bernadette waldvogel, demógrafa do seade
A especialista ressalta, no entanto, que a população de São Paulo ainda segue em crescimento e tem não só uma importante quantidade de adultos para garantir a produtividade, mas um universo crescente de idosos que têm envelhecido melhor do que as gerações que vieram antes, mais ativos, produzindo, consumindo, vivendo sozinhos e com mais independência.
Em nota, o IBGE disse que ainda não tem previsão de divulgar os dados necessários para as novas projeções populacionais. Já a estimativa populacional, indicador retroativo, terá a divulgação anual mantida. O valor referente a 2023 será divulgado em agosto.
Efeitos no mercado de trabalho
Enquanto isso, algumas facetas desse novo Brasil, com mais idosos, menos crianças e força de trabalho mais enxuta, já são perceptíveis na prática. Jefferson Mariano, do IBGE, ressalta o aumento de disciplinas como “empreendedorismo” em carreiras de graduação. “Não é porque é legal. É porque os jovens estão percebendo que o empreendedorismo parece ser uma das últimas alternativas em relação ao mercado de trabalho”, diz.
Para Marcos Gonzaga, da UFRN, ainda é tempo de o Brasil enfrentar o desafio da qualificação da mão de obra. “Só teremos pleno-emprego caso haja qualificação para todos”, diz ele, ressaltando que o peso de mulheres na sociedade e na economia será cada vez maior, já que a estimativa de vida delas é mais alta.
“Se contarmos somente com a parte previdenciária, essas pessoas já estarão em um sistema bastante deficitário, sem capacidade de pagar os benefícios atuais. E tem também a parte assistencial, que sobrecarrega ainda mais o sistema. Parece que as últimas reformas da Previdência não resolverão por completo esses desafios.”
marcos gonzaga, PROFESSOR E pesquisador da ufrn