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A boiada passa, chega a conta e fica a pergunta: quem vai pagar?

É famosa a frase do então Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles sobre mudanças na legislação ambiental, sob o viés de um governo negacionista, dita numa reunião ministerial em 2020: “Ir passando a boiada”.

O neoliberalismo forjou tragédias possivelmente evitáveis em vários lugares do mundo e estamos acompanhando, em tempo real, o que acontece no Rio Grande do Sul, infelizmente em proporções inéditas e gigantescas naquela região. Não há, ainda, como calcular as perdas. Pode ser que se mostre incalculável se pensarmos na dimensão humana, nas milhares de pessoas que agora estão na condição de desalojadas, refugiadas climáticas, em luto. 

A comoção é algo esperado nessas situações, assim como a mobilização popular, já tradicional nessas grandes tragédias, que costuma fazer doações, gerar e consumir conteúdo tanto em mídias tradicionais como, mais recentemente, digitais.

Enquanto as chuvas caem no Rio Grande do Sul, uma enchente solidária transborda todo tipo de ajuda até o estado. Vale lembrar que em outros desastres ambientais, a comoção, a depender da população atingida, não é tão visível e audível como tem sido no Sul, a exemplo de Mariana e Brumadinho. Quais seriam os motivos? 

O território gaúcho devastado pelas águas abriga uma população que foi, inicialmente, vulnerabilizada de forma horizontal. No entanto, pontuamos que comunidades quilombolas e tradicionais, espaços religiosos de matrizes africanas, ribeirinhos, e outras populações, principalmente as que têm conexão diferenciadas com seus territórios – e que, muitas vezes – já estavam enfrentando outras precariedades socioeconômicas – são populações que se tornam ainda mais expostas ao racismo ambiental, logo, são mais passíveis de injustiças climáticas.

LEIA MAIS: O que explica as chuvas no Rio Grande do Sul

Os efeitos da passagem da boiada e a identificação de quem abriu a porteira podem até ficar em segundo plano, inicialmente. Mas, conforme as águas baixam, os destroços e omissões se tornam mais visíveis.

Em 21 de maio, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu ao governo do Rio Grande do Sul e à Assembleia Legislativa gaúcha 10 dias para se pronunciar sobre as mudanças na legislação ambiental que começaram em 2019 e, na sequência, o plenário do STF decidirá se a alteração é constitucional ou não. O Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União indica a necessidade de inspeção das mudanças legislativas pela Corte. O subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado se pronunciou: “Legislações ambientais não podem ser afrouxadas em prol de supostos benefícios econômicos. De certo, as exportações do agronegócio do Rio Grande do Sul estavam em alta devido às mudanças legislativas. Contudo, qual preço disso tudo?”.

O argumento “achar culpados e culpadas não trará vidas, patrimônios e negócios de volta” não apenas é insustentável, como desonesto e imprudente. A apuração de responsabilidades é um imperativo da gestão pública. À questão da legislação, soma-se a corrida imobiliária – com apoio da gestão neoliberal – e a falta de manutenção, renovação e ação imediata do sistema de escoamento em algumas cidades, como Porto Alegre. 

Foto: Carlos Macedo/Bloomberg

PEC das Praias

No contexto de impactos ao meio ambiente está a PEC das Praias (PEC 3/2022), de autoria do ex-deputado federal Arnaldo Jordy (Cidadania-PA), que atualmente tramita no Senado Federal e, nessa casa, tem como relator o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Essa PEC prevê a transferência de propriedade de terrenos do litoral brasileiro da marinha brasileira (União) para estados, municípios e proprietários privados.

Na visão de Ana Ilda Pavão, do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais, o teor dessa PEC, no fundo, é a urbanização das orlas e os grandes empreendimentos. “Quem vai lucrar? Não somos nós. Nós só vamos perder. Essa PEC precisa ser revista. Muito tem se falado aqui, mas se esqueceram de falar da vida”, disse.

Ao promover a dilapidação de uma legislação regulatória em relação ao meio ambiente para beneficiar segmentos econômicos, como, o setor imobiliário e do agronegócio, o estado agrícola planta “progresso” para colher não se sabe exatamente o quê. Além disso, mostra-se imprudente ao lidar com mudanças climáticas como fenômenos da natureza, desconsiderando a ação humana. Afinal, a boiada que passa não é exatamente constituída de animais, mas de seres humanos e suas ações metaforizadas na fala infeliz do ex-Ministro Salles.

No momento anterior às enchentes, lucros. Mas e agora que o estado chegou a estar com 85% do seu território sob as águas? Um neoliberalismo que se ampara ideológica e politicamente no negacionismo pode ser chamado de burro, nesse contexto? Não prevenir para lucrar é inteligente em que lugar do mundo?

São perguntas difíceis que requerem respostas urgentes, assim como mudanças de paradigma e, possivelmente, nova revisão legislativa. Ainda no campo dos questionamentos difíceis, como uma gestão de viés neoliberal vai receber a ajuda do estado, já que que prega o “estado mínimo”? O “como” aqui é estratégico porque não tem muita opção. Vai ter que receber ou não vai haver reconstrução ágil e/ou viável, revelando mais um paradoxo dessa grande tragédia brasileira.

Outro ponto que precisamos destacar é que essa “boiada” passou no Sul, mas seus efeitos serão sentidos, economicamente, em todo o país. Recursos que seriam usados em outras regiões vão precisar ser realocados para mitigar os impactos no estado. O comércio exterior brasileiro sentirá os efeitos, pois o Rio Grande do Sul – só em 2023 – chegou a US$ 22,3 bilhões em exportações, um volume que impacta a economia nacional, assim como uma eventual perda de parte do montante.

Na perspectiva da agenda ESG, é o momento de redirecionar as atividades produtivas no estado a partir de bases sustentáveis, pois não são fenômenos episódicos, são recorrentes. Para que as populações e cadeias produtivas do Rio Grande do Sul não voltem a ser atingidas vai ser preciso renegar o negacionismo, tornando a gestão ambiental e de recursos hídricos basilares no planejamento. Ou seja: priorizar as políticas públicas considerando as mudanças climáticas para evitar prejuízos humanos e materiais descomunais.

Além disso, é preciso que a população se envolva na mudança, identificando representantes que tenham compromisso com as questões climáticas. Também é necessário que as empresas assimilem que as tragédias destroem negócios e atingem lucros. As mudanças climáticas não são algo do futuro e o presente do Rio Grande do Sul é a prova para quem desacreditava. Nessa linha, o atual Governo Federal empenha-se em mobilizar todos os segmentos da sociedade para garantir participação social e contribuir com a elaboração do Plano Clima Adaptação, uma política que vai elaborar a estratégia federal de adaptação à mudança do clima. 

Como disse a Nina Silva em suas redes sociais, para finalizar nossa reflexão, é preciso – a partir do compromisso com uma abordagem ESG – assumir que “estamos reconhecendo a interdependência entre as ações humanas e o meio ambiente, e assumindo a responsabilidade de proteger não apenas os lucros ou a reputação das empresas, mas também as vidas e os meios de subsistência das pessoas afetadas. Nesse sentido, a integração desses princípios é um imperativo moral que coloca as necessidades socioambientais no centro das decisões e ações empresariais e governamentais. Estamos falando sobre vidas.”

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