Selic: por que essa mula empacou no alto do morro
O Focus praticamente jogou a toalha. Em janeiro, a pesquisa do BC junto a instituições financeiras, universidades e empresas dizia que a Selic fecharia 2024 em 9% cravados. Há uma semana, o número que aparecia na bola de cristal era maior: 10%. E agora, no relatório divulgado nesta segunda (3), a previsão já passou para 10,25%.
Ou seja: há mais cinco reuniões do Copom neste ano (junho, julho, setembro, novembro, dezembro). E o mercado acredita que o Comitê de Política Monetária do BC terminará apenas uma delas anunciando um novo corte, de 0,25% (já que a taxa básica da economia está em 10,50%).
Os motivos para a deterioração das expectativas pululam no noticiário há meses. Primeiro, tem a questão fiscal. A dívida do governo saltou para R$ 8,4 trilhões. Dá 76% do PIB. Há 15 meses, no início do governo Lula, eram 71,7% – e vinham em rota de queda, lá do alto dos 87,6% do auge da pandemia.
O sentido se inverteu, numa realidade em que o ideal para países emergentes, que não contam com o privilégio de imprimir moeda forte, é de 60%.
Para piorar, o governo sinalizou em abril que pretende gastar mais do que imaginava daqui para a frente. A meta era fazer um superávit primário de 0,5% do PIB em 2025 – traduzindo, gastar coisa de R$ 55 bilhões a menos do que tiver arrecadado e usar a sobra para reduzir a dívida (o “primário” é porque não entram nessa conta os gastos com rolagem de dívida).
Bom, no dia 15 daquele mês, mudaram a diretriz, de um superávit de 0,5% positivo para um de 0% cravados. Em 2023, naturalmente, houve déficit: 2,29% do PIB – o segundo pior da história.
Gastos públicos são um fator que causa inflação, pois colocam mais moeda para circular na economia. O propósito dos juros é drenar dinheiro da praça – de modo a reduzir a demanda e, assim, chegar ao objetivo final: diminuir a inflação (com menos demanda, os preços ficam sem ter para onde subir).
Em suma: enquanto os juros básicos drenam moeda, gastos públicos injetam moeda. Aí não tem jeito: gastos do governo lá no alto exigem juros lá no alto. E isso começou a segurar as perspectivas de mais cortes na Selic.
Não “só” isso. Juros servem para segurar a inflação, certo? Mas outro fator que causa inflação é o dólar. A moeda americana em alta joga os preços lá para cima. Primeiro, por conta das importações. Tudo que vem de fora fica mais caro, óbvio. Segundo, porque os produtores brasileiros podem vender para o exterior se quiserem – então aumentar seus preços quando a cotação internacional daquilo que vendem sobe.
E o que faz o dólar subir? Bastante coisa. Uma das principais é a taxa básica do Fed, o banco central dos EUA. E ela está pressionada para cima. Em parte, pela mesma razão daqui: a fiscal.
O governo americano está operando déficits pesados: gasta bem mais do que arrecada, pegando emprestado o que falta para fechar as contas. Em 2023, o déficit primário ficou em 3,8% do PIB. Pior até do que o nosso.
Com isso, a relação dívida-PIB deles chegou a 120%. É a maior desde 1946, quando chegou a conta da Segunda Guerra. Com gastos nesse nível, não há santo que aguente. A inflação fica pressionada para cima, e os juros também.
Quanto maiores os juros lá fora, mais os títulos públicos do governo americano pagam. Isso aumenta a demanda por dólares no mundo – pois é com dólares que se compram esses títulos. Com a demanda em alta, o preço dele em real sobe. E os produtos cotados em reais seguem ladeira acima. Inflação.
A mecânica das expectativas
Essa é a “parte fiscal” do problema. A outra é a credibilidade dos bancos centrais, essas autarquias cuja razão de existir é controlar a inflação, determinando a taxa básica de juros.
Grosso modo, os juros de um banco central são o preço que os bancos normais pagam pelo dinheiro que vão emprestar ao público mais adiante – daí o nome “taxa básica”. Quanto maior for a taxa básica, mais caro o dinheiro fica. Passa a circular menos moeda. Diminui-se a “atividade econômica” – menos consumo, menos investimento. A demanda cai, e a inflação desacelera. Trata-se de um processo doloroso, que pode levar a uma recessão.
O problema é que o medo desse efeito colateral pode fazer com que um BC não aplique a dose certa de juros, e deixe o câncer da inflação se espalhar. Até outro dia, não havia essa preocupação com a postura do nosso banco central. O mercado entendia que ele era um médico particularmente firme, capaz de pecar mais pelo excesso de remédio do que pela falta.
Mas isso mudou na última reunião do Copom. Quatro dos nove integrantes votaram por um corte de 0,5 ponto percentual na dose de remédio anti-inflação, algo que reduziria a Selic para 10% cravados. Foram voto vencido, já que os demais cinco preferiram tirar só 0,25 pp.
O problema: todos esses quatro integrantes foram indicados pelo governo Lula – crítico à manutenção dos juros altos. E dos cinco que votaram pela atitude mais firme contra a inflação (a de reduzir menos os juros), três estão no último ano de seus mandatos; a começar pelo presidente, Roberto Campos Neto. Em questão de meses, a ala mais dura será minoria.
Isso deixa o mercado com receio de que logo mais teremos um BC frouxo, menos capaz de lutar contra a inflação. O que também tem um efeito colateral: aumenta a expectativa de inflação para o futuro. E num nível bem mundano: agentes econômicos continuam aumentando seus preços, por receio de que seus fornecedores, por exemplo, o façam antes.
Essa inércia inflacionária pressiona o BC a segurar os cortes na Selic. Mesmo um Banco Central de perfil mais relaxado se veria obrigado a endurecer, por falta de alternativa. E as perspectivas para o futuro da Selic sobem, como está acontecendo.
A eventual vaidade de Powell
Acontece algo parecido nos EUA, por outras razões. Jerome Powell, o presidente do Fed, pode ter “cantado vitória” antes do tempo. Essa é a opinião de José Júlio Senna, ex-diretor do Banco Central.
“O Powell se enamorou da ideia de passar para a história como o presidente do Fed que conseguiu derrubar a inflação, levá-la para a meta, sem custo”, diz o economista, que hoje atua como chefe do Centro de Estudos Monetários do FGV/Ibre e consultor associado da MCM, uma empresa de consultoria econômica.
No início de 2022, Powell via a inflação americana subir para o maior nível em quatro décadas: ao norte dos 5% na medição pelo núcleo do PCE – o índice que melhor exprime o comportamento dos preços para o longo prazo.
Em março daquele ano, então, o Fed começou a subir a taxa básica, que ainda estava em zero (mais precisamente, naquela banda entre 0% e 0,25% – nada, de qualquer forma).
Bom, não menos importante do que subir os juros é o banco central deixar claro para todo mundo que eles não vão cair logo ao primeiro suspiro da inflação. De outra forma, a mera expectativa de que os preços subam lá na frente alimenta aumentos na vida real.
O Fed fez seu trabalho direitinho. Em julho de 2023, os juros americanos chegaram ao patamar atual, de 5,50% (o maior desde 2001). E ao fim de cada reunião do Fomc (o Copom deles), Powell dizia que só iria começar os cortes quando a inflação estivesse rumando claramente para a meta deles, de 2% – doesse a quem doesse.
Para ter uma ideia melhor da alta, explore o gráfico aqui embaixo (ele mostra a taxa efetiva; sempre próxima daquela que é divulgada, a taxa-meta, mas não precisamos nos aprofundar aqui nesta tecnicidade).
A disciplina do Fed, porém, começou a dar sinais de desgaste no fim do ano passado. Em dezembro, Powell sinalizou pela primeira vez a perspectiva de três cortes em 2024. Na época, o dado mais recente do núcleo do PCE era o de outubro (divulgado no final de novembro): 3,4%. Ainda longe da meta.
Powell também deu a entender em dezembro que o Fed estaria pronto para baixar os juros caso o desemprego subisse. Em março, falou isso com todas as letras, na abertura do discurso pós-reunião do Fomc.
O Fed tem o que se chama de “mandato dual”. Sua razão de existir não é apenas controlar a inflação, mas também manter o pleno emprego (é assim no Brasil também, desde 2021, mas ainda falta criar a tradição). Bom, quando a inflação é a prioridade, não há “mandato dual”. Mira-se apenas a inflação e pronto. Se a economia fraquejar, paciência.
Nota: a economia não tinha fraquejado. O desemprego nos EUA estava em 3,9% (e segue assim). Bem abaixo da média histórica, de 5,70%.
Mas nesse discurso ele deixou claro que, mesmo assim, a inflação não era mais a prioridade zero. “O Powell anunciou que estava voltando para o dual. Na minha avaliação, fez isso de forma prematura”, diz Senna. Daí a interpretação de que o presidente do Fed pode ter sido menos racional do que a encomenda, dando-se a missão virtualmente impossível de fazer a inflação voltar aos 2% sem consequência alguma para a economia.
Powell acabou atiçando a economia, na verdade, só com o poder de suas falas. Os juros de longo prazo (determinados pelo mercado, não pelo BC) caíram, as bolsas subiram, a massa salarial cresceu.
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Bom para o cidadão americano no curto prazo, ruim para o combate à inflação. Uma economia aquecida significa demanda em alta (se você ganha um aumento, vai usar mais serviços, comprar mais bens…). E demanda em alta é justamente aquilo que os juros combatem.
Resultado: a inflação parou de cair. O núcleo do PCE está há três meses travado em 2,8%. Bem acima da meta de 2% (não é pouca a diferença: sob 2,8% anuais, os preços dobram a cada 26 anos; a 2%, só a cada 36). E agora, dada a resiliência nos preços, as expectativas de cortes na taxa do Fed sublimaram.
No começo do ano, 65% dos investidores americanos acreditavam que o primeiro corte viria em março, de acordo com a ferramenta Fed Watch, da CME. Não rolou. Agora, a maioria das apostas (51%) é para setembro. E 10% acham que 2024 vai terminar sem corte algum nos juros dos EUA, que ajudam a determinar os nossos.
Pobre Selic.